Lição 3

Stablecoins em destaque — EMTs, ARTs & modelo de supervisão dos emissores

Este módulo classifica as stablecoins reguladas segundo o MiCA em ARTs, EMTs e tokens de utilidade. Apresenta as características essenciais de cada categoria, os seus casos de uso e as implicações jurídicas para os emissores. Explica as diferenças entre estes tipos de tokens. Assim, os agentes do mercado podem identificar claramente os requisitos de conformidade aplicáveis.

Introdução

O Regulamento dos Mercados de Criptoativos (MiCA) não trata todas as stablecoins de forma igual. Este diploma define uma taxonomia rigorosa que distingue Tokens de Dinheiro Eletrónico (EMTs), Tokens Referenciados a Ativos (ARTs) e outros tipos de criptoativos. É esta classificação que determina os requisitos aplicáveis aos emissores, desde governação e gestão de reservas até direitos de resgate e obrigações de reporte regulamentar.

Esta diferenciação é relevante porque reconhece que uma stablecoin de moeda única apresenta riscos distintos para o sistema financeiro face aquelas que recorrem a uma cesta diversificada de ativos. O enquadramento legislativo também aborda diferenças práticas e jurídicas entre tokens concebidos apenas para pagamentos e aqueles desenhados como instrumentos de investimento ou reserva de valor, suportados por uma base mais alargada de ativos.

Para emissores, investidores e intermediários que pretendam operar no mercado cripto da União Europeia, é fundamental compreender as definições e o regime regulatório aplicável a EMTs e ARTs ao abrigo do MiCA.

Definição de Tokens de Dinheiro Eletrónico (EMTs)

Segundo o MiCA, um Token de Dinheiro Eletrónico é um criptoativo criado para manter um valor estável, referenciando o valor de uma moeda oficial única de um Estado-membro da UE ou de uma moeda estrangeira reconhecida. Do ponto de vista funcional, os EMTs representam digitalmente uma moeda fiduciária numa blockchain e destinam-se sobretudo a fins de pagamento.

Na prática, os EMTs são semelhantes ao dinheiro eletrónico tradicional previsto na Diretiva do Dinheiro Eletrónico (EMD2), mas a sua emissão e transferência ocorrem em tecnologia de registo distribuído, ao contrário do sistema bancário convencional. Esta diferença permite que os EMTs sejam integrados em protocolos DeFi, pagamentos internacionais e sistemas de liquidação em blockchain, mantendo-se sob fiscalização regulatória idêntica à aplicada ao dinheiro eletrónico fora da blockchain.

A obrigação central dos emissores de EMT consiste em assegurar que os detentores podem resgatar os seus tokens, a qualquer momento, pelo valor nominal na moeda de referência. Este requisito está em conformidade com os princípios de proteção do consumidor consagrados na legislação do dinheiro eletrónico tradicional, conferindo aos utilizadores um direito direto e juridicamente vinculativo sobre o emissor.

Definição de Tokens Referenciados a Ativos (ARTs)

Os Tokens Referenciados a Ativos diferenciam-se por assentarem numa referência a múltiplos ativos, e não a uma única moeda. Os ativos que compõem a base dos ARTs podem englobar várias moedas, mercadorias, criptoativos ou instrumentos financeiros. O objetivo é oferecer estabilidade ao token sem depender apenas de uma moeda fiduciária, aproximando os ARTs de produtos de investimento multiativos.

Do ponto de vista regulatório, os ARTs implicam desafios de controlo mais complexos. As características dos ativos subjacentes trazem riscos de mercado, crédito e operacionais, que variam consoante a natureza e volatilidade dos mesmos. Por exemplo, um ART que referencia o euro e o ouro estará exposto a variações do preço do ouro, risco inexistente num EMT exclusivamente vinculado ao euro.

O MiCA responde a esses riscos com exigências adicionais de autorização, governação reforçada e obrigações detalhadas de divulgação para os emissores de ARTs. Os emissores devem publicar informação rigorosa sobre a cesta de ativos que suporta o valor do token, incluindo a metodologia utilizada para manter a estabilidade e o processo de reajuste das reservas subjacentes.

Que tipos ficam fora das classificações EMT e ART

A taxonomia do MiCA contempla ainda criptoativos que não se enquadram como EMTs ou ARTs. Entre estes contam-se os utility tokens, que apenas conferem acesso a serviços ou produtos, e ativos não colateralizados ou sustentados exclusivamente por mecanismos algorítmicos. Embora estejam sujeitos ao MiCA quando oferecidos ao público ou admitidos à negociação, estes ativos não têm de cumprir os requisitos de reserva, resgate ou gestão de ativos previstos para EMTs e ARTs.

Stablecoins algorítmicas, em especial, estão excluídas das definições de EMT e ART por não recorrerem a reservas convencionais para garantir a estabilidade de valor. O MiCA não proíbe estas stablecoins, mas impede que sejam comercializadas como stablecoins se não dispuserem de reservas suficientes para sustentar o seu valor. O objetivo é evitar interpretações erradas por parte dos consumidores e limitar riscos sistémicos semelhantes ao colapso da TerraUSD.

Requisitos de licenciamento para emissores de EMT e ART

Os emissores de EMTs e ARTs têm de ser entidades autorizadas na União Europeia. Para EMTs, exige-se licença de Instituição de Dinheiro Eletrónico (EMI) ou instituição de crédito, conforme o enquadramento bancário europeu. Os emissores de ARTs necessitam de uma autorização MiCA específica junto da autoridade nacional competente (NCA), independentemente de já operarem noutros segmentos financeiros.

O processo de licenciamento envolve a análise da estrutura de governação, adequação de capital, políticas de gestão de risco e solidez operacional do candidato. Os candidatos devem provar a sua capacidade técnica para gerir a emissão, resgate e salvaguarda das reservas, de acordo com o MiCA. Isto implica mecanismos seguros para custódia dos ativos de reserva e sistemas robustos para controlo da circulação dos tokens.

Normas de governação e operação

O MiCA valoriza especialmente a governação para garantir a responsabilidade dos emissores. É obrigatório constituir um conselho de administração com atribuições explícitas para supervisionar o risco, a conformidade e os processos operacionais. Os gestores de topo são sujeitos a avaliações de competência e idoneidade, assegurando a sua aptidão para gerir a instituição.

Ao nível operacional, os emissores devem assegurar sistemas capazes de responder a picos de resgate sem interrupção no serviço. Tal implica manter liquidez suficiente nas reservas e prever mecanismos de financiamento alternativo. No caso dos ARTs, é ainda necessário acompanhar permanentemente a composição e valorização da cesta de ativos.

Exigências de reserva e salvaguarda

Um dos fundamentos do regime MiCA para EMTs e ARTs é a obrigatoriedade de reservas totalmente colateralizadas. Para EMTs, as reservas devem ser constituídas por ativos denominados na moeda de referência e depositados junto de uma entidade depositária autorizada. Já as reservas de ARTs podem incluir um leque mais amplo de ativos, mas estes devem ser líquidos, de baixo risco e devidamente diversificados.

Os ativos de reserva devem estar segregados dos fundos próprios dos emissores, para salvaguardar os detentores em caso de insolvência. Os emissores devem realizar reconciliações diárias para garantir que o valor das reservas iguala ou excede o valor total de tokens em circulação. São exigidas auditorias independentes e certificações públicas das reservas, em períodos regulares, para fomentar a transparência e a confiança no mercado.

Direitos de resgate e proteção do consumidor

Os EMTs e ARTs, segundo o MiCA, garantem aos detentores o direito legal de resgate pelo valor nominal (EMTs) ou pelo valor de mercado do conjunto de ativos (ARTs). O resgate deve ser realizado sem atrasos indevidos e os emissores estão proibidos de cobrar taxas ou impor restrições que dificultem o acesso ao capital.

Para reforçar a proteção do consumidor, o MiCA exige que todos os riscos relevantes sejam divulgados de forma clara nos white papers dos emissores. Estas informações devem cobrir potenciais cenários de desvinculação, iliquidez dos ativos ou disputas legais sobre as reservas. Esta transparência permite decisões informadas e segue os padrões de proteção ao consumidor da União Europeia.

EMTs e ARTs de importância significativa

O MiCA introduz o conceito de EMTs e ARTs “significativos”—tokens cuja dimensão, impacto ou ligação ao sistema financeiro exigem supervisão reforçada. A avaliação de relevância tem por base critérios como capitalização de mercado, número de utilizadores, volume de transações e atividade além-fronteiras.

Emissores de tokens significativos estão sujeitos a requisitos de capital superiores, reporte mais frequente à Autoridade Bancária Europeia (EBA) e participação em testes de stress supervisionados. Estes emissores podem ser supervisionados diretamente pela EBA, e não apenas pelas autoridades nacionais competentes.

Obrigações de reporte e divulgação

A transparência é central na abordagem regulatória do MiCA. Os emissores estão obrigados a entregar relatórios periódicos à autoridade de supervisão, detalhando a composição das reservas, o movimento de resgates, alterações relevantes na governação e quaisquer eventos que possam afetar a estabilidade do token. Tokens significativos devem ainda publicar resumos mensais de indicadores-chave para consulta pública.

O white paper é peça fundamental da divulgação. Nele deve constar a finalidade, desenho, governação, riscos, modelo de reservas e processos de resgate do token. Qualquer alteração relevante obriga à publicação de atualizações para garantir que os stakeholders têm acesso a informação sempre atualizada.

Interação com obrigações de AML/CFT

O MiCA regula aspetos prudenciais e de conduta, mas funciona em articulação com o regime europeu de Prevenção ao Branqueamento de Capitais (AML) e Combate ao Financiamento do Terrorismo (CFT). Os emissores devem adotar medidas rigorosas de identificação do cliente (KYC) e monitorizar todas as transações que levantem suspeita. As transferências de EMTs e ARTs que excedam determinados montantes têm de cumprir a “travel rule” da UE, que obriga à partilha de informações do remetente e do destinatário entre prestadores de serviços.

Exemplos práticos

No início de 2025, a Circle tornou-se a primeira entidade não bancária a receber licença de EMI europeia para emitir EMTs, permitindo que USDC e EUROC operem plenamente sob o regime MiCA. A empresa adotou certificações diárias das reservas, acordos de custódia multi-jurisdicional e sistemas de resgate em tempo real de forma a garantir a conformidade operacional.

No universo dos ARTs, o EURCV da Société Générale foi lançado em finais de 2023 como token indexado ao euro e suportado por uma carteira diversificada de ativos, incluindo obrigações soberanas e numerário. O processo, ao abrigo das regras MiCA para ARTs, incluiu aprovação prévia do white paper pelo regulador francês e auditorias trimestrais das reservas divulgadas aos investidores.

Exclusão de responsabilidade
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